As Palavras Não São Fáceis
Teria sido perfeito para este texto se F. R. David tivesse lançado o êxito “Words Don’t Come Easy”, de 1982, um ano mais tarde. 1983 foi o ano em que pela primeira vez tentei guiar uma mota. Esta hipotética coincidência seria o mote perfeito para falar desta exposição do Tiago Alexandre, nomeada Words Don’t Come Easy, aparentemente sobre motas. Nem a música é de 1983, nem há coincidência ou mote. A exposição também não é sobre motas.
A mota, como símbolo central deste conjunto de trabalhos agora apresentado, leva-nos em diversas e contraditórias direcções à medida que o observamos. À rebeldia de uma certa ideia de juventude com Marlon Brando, the wild one, a encabeçar um bando de motoqueiros e ao ritual de passagem à idade adulta e consequente afirmação de masculinidade, Tiago Alexandre contrapõe uma poética e uma estética onde as palavras, nunca fáceis, fazem derrapar os conceitos e as identidades pré-concebidas. A mota, enquanto entidade descarnada até aos ossos, aponta-nos o sentido da fuga de um status quo que provavelmente ninguém quer ter, a fuga de uma matriz estrutural que nos define perante os outros, perante nós mesmos. E quando nos olhamos no espelho, despidos até aos ossos de símbolos e de signos, os que cultivamos e os que nos são emprestados, o que é que nos resta? Será que as motas têm alma?
À entrada da galeria existe um letreiro luminoso que nos pergunta – Who Runs the World? Eu pergunto – Who Runs The Words? As palavras não se governam. As palavras governam a percepção que temos do mundo e a ordem do discurso é a única ferramenta possível para chegarmos à “verdade”. Tanto o discurso do louco como o do sábio usam as mesmas palavras e estas são igualmente as mesmas no discurso do ódio e no do amor. E quando as palavras não chegam, temos sempre os emojis.
Existem regras para a construção do discurso que define uma disciplina e existem princípios de agrupamento de discurso que definem um autor. No entanto, dizemos que ficamos sem palavras perante os sentimentos mais arrebatadores que não conseguimos descrever. O medo, o espanto, a alegria, o êxtase, a adoração, the sound of your skin requerem uma linguagem que estará eternamente por inventar. Regras e princípios à parte, o discurso está feito. O do artista e o do autor. Well I’m just a music man and melody is so far my best friend.
Velocidade.
Algures em 1983, tinha eu 10 anos, foi-me dado o privilégio de conduzir pela primeira vez uma Vespa, mais conhecida como a “mota do pai”, lavada, polida, tratada como o quinto elemento da família e o mais importante. Eu e a minha irmã ficávamos em sentido cada vez que, ao fim do dia, aquele som de vespa se aproximava a caminho de casa. Depois o beijo na pele fria da cara do meu pai. No dia em que foi decidido que eu já era homem suficiente para guiar a mota do pai, a minha irmã, quatro anos mais velha do que eu, ficou a ver. Orgulho e medo. A Vespa era pesada e os meus pés, que não chegavam ao chão, não tinham força para o pedal que a punha a funcionar. Logo que larguei o manípulo da embraiagem, acelerei demais e, pouco consciente da lógica de aceleração e abrandamento dos motociclos, fiz o movimento de mão errado, aumentando ainda mais a velocidade e acabando por chocar num muro que, iria jurar por tudo!, não existia naquele sítio. Não me lembro do valor do arranjo da mota mas nunca mais voltei a conduzi-la.
Quando andava no 9º ano, mais crescido e mais robusto, voltei às aulas de condução da mota do pai. Foi-me permitido ir para a escola de mota, aos sábados, porque assim chegava a casa mais rápido que o autocarro que nos trazia da escola e podia passar o resto da tarde a ajudar o meu pai no campo. Aquele que eu senti como um acontecimento emancipatório pouco ou nada fez pela minha parca vida social de liceu. Os meus romances de sábado com a mota do pai foram sol de pouca dura. Mais ou menos pela mesma altura, e sem carta de condução, estava autorizado a conduzir o carro do pai. Um Ford Cortina de seis lugares e mudanças no volante que me fazia sentir um ás. A minha irmã, já com 18 anos, ficou indignada. Teve que ir trabalhar um Verão para ter dinheiro e tirar a carta de condução às escondidas. Ela nunca conduziu o carro do pai.
Travão.
Muito antes de tudo isto, começaram as minhas primeiras experiências sensuais com a Maria João. No final dos anos 70, no pós 25 de Abril, as motas invadiram a província. Veículo por excelência dos pobres, tal como na Itália do pós-guerra, o apelo do cromado instalou-se como sinónimo de progresso e liberdade. Ao lado da casa da minha avó, existia um barracão que ela alugava ao Sr. Leonel que o transformou em armazém de motas para venda. Era nesse barracão, por entre Casais, Famels e Zundapps, que eu e a Maria João nos entregávamos a uma brincadeira a que chamávamos “amostras” e que consistia em mostrarmos, à vez, diferentes partes do corpo, começando por bocados de pele mais inocentes e acabando naquilo que realmente queríamos ver. Depois a Maria João fartou-se de mim e foi brincar às “amostras” com outros. Em mim ficou o toque da napa do assento, o óleo nas mãos, o cheiro a borracha dos pneus.
A minha mãe nunca quis conduzir a Vespa do meu pai. Apesar de este veículo ser construído de forma a que não seja preciso abrir as pernas para o conduzir, a minha mãe nunca lhe tocou, remetendo-se ao banco traseiro e sempre sentada com as duas pernas para o mesmo lado. Foi uma mulher, Audrey Hepburn no filme Férias em Roma (William Wyler, 1953), que popularizou a Vespa, primeiro no cinema e depois enquanto ícone pop, símbolo de fuga às convenções e constrangimentos sociais e imagem de marca da cidade eterna. Talvez a minha mãe não estivesse tão entediada na vida como a Hepburn no filme. Definitivamente nunca foi princesa, e muito menos, uma princesa de férias em Roma. Talvez a minha mãe nunca tenha sentido a necessidade de fugir à severa vigilância daqueles que a rodeiam. Espero que, bem lá no fundo, algum dia tenha sonhado com um romance secreto com o Gregory Peck.
Mudança.
Quando eu e o Miguel Ângelo fugíamos na mota dele para trás do campo de futebol, onde fumávamos SG filtros, surripiados do café do pai dele, e praticávamos a masturbação mútua, eu já sabia quem era o Marlon Brando. Tinha ficado em êxtase quando o tinha visto no The Wild One (Lázló Benedek, 1953), numa matiné daquelas que o pai do Miguel Ângelo organizava todos os domingos no café onde exibia filmes VHS, alugados no videoclube. E agora reparo que ambos os filmes de que falo são de 1953, uma data que, apesar de coincidente, não me diz rigorosamente nada. Quando pensava no Brando, quando via o Brando, quando sentia em mim esse desejo, não sabia muito bem se queria ser como ele ou se o queria a ele. Não sabia se ele era uma extensão da mota ou se a mota era uma proeminência dele, apontada de forma ameaçadora à minha cara. Quando seguia na mota com as mãos nas ancas do Miguel Ângelo, talvez tivesse pensado que ele era o Johnny, mas depois chegávamos ao campo de futebol e a realidade era outra.
Na impossibilidade de ser um bad boy como o Johnny, transformei-me em Jimmy, a personagem do filme Quadrophenia (Franc Roddam, 1979) baseado no álbum homónimo dos The Who, lançado cinco dias depois do meu nascimento. Jimmy era o jovem herói proletário e descontente, o existencialista em anfetaminas, o rapaz Mod, por natureza antagonista ao Rocker que eu não me permitia ou conseguia ser. No filme, Jimmy só encontra a liberdade depois de destruir a mota. Na minha adolescência mais tardia fui Jimmy: nas angústias, nas desilusões, na frustração, no ódio, nas dúvidas, na rejeição e nos instintos suicidas. Fui Jimmy em quase tudo, menos nas drogas. Mas disso trataria uns anos mais tarde.
Escape.
Agora o momento em que fugimos, em que apesar das dúvidas, escolhemos uma direcção e nunca mais olhamos para trás. No texto. Na arte. E na vida. Ou será tudo a mesma coisa, uma vez que as palavras usadas para escrever este texto, para descrever a arte e para nomear a vida são as mesmas?
A província ou o subúrbio, tanto para o autor como para o artista, constituem a estrutura de que se quer escapar, o discurso periférico da margem trazido para o centro através das fissuras daquilo que em tempos se apresentou como um beco sem saída. Sacavém não é New Jersey mas a americanização do nosso imaginário diz-nos que também pode ser, porque tudo se tornou idêntico na abundância do mundo virtual. A internet suburbanizou-nos ao mostrar-nos a real distância a que estamos uns dos outros, para assim nos manter afastados, e disseminando o centro em inúmeros centros a que podemos aceder sem sair do mesmo lugar. Que fazemos nós quando já temos tudo? Como aprender a desejar algo a que já não damos importância? Como olhar de novo para tudo o que já vimos?
Agora, o texto volta à galeria. No centro, uma coluna de capacetes degolados. O capacete abafa o ruído do mundo e permite-nos ouvir o som do coração na cabeça enquanto nos protege da queda, o som da ventania interior que é a nossa respiração, ao mesmo tempo que, lá fora, os nossos braços abertos ouvem o vento do mundo. Dentro do capacete podemos ser quem nós quisermos. Se ela fosse um rapaz, diz-nos, nem que fosse por um dia, sairia da cama de manhã e vestiria o que lhe apetecesse, iria beber cervejas com os amigos e engatar raparigas, sairia com quem quisesse e nunca seria recriminada por isso. Todos vivemos a história que nos foi contada.
No fim, quem foge é o texto. Escapa-se das folhas onde foi impresso e paira sobre a sala branca da galeria. Diz-nos: And in the naked light I saw ten thousand people, maybe more. People talking without speaking, people hearing without listening, people writing songs that voices never share and no one dare disturb the sound of silence.